As dúvidas e os riscos do decreto do Ministério da Saúde que implementaria, sem passar pelo Congresso, parte da reforma sanitária: especialistas alertam sobre o dinheiro

Com a promulgação do Decreto 0858, o governo realizou uma mudança fundamental em sua estratégia de transformação do sistema de saúde colombiano sem passar pelo Congresso, onde não conseguiu avançar com a reforma do sistema de saúde. O novo decreto, assinado pelo Ministério da Saúde, adota oficialmente o "Modelo de Atenção Preventiva, Preditiva e Resolutiva" como política pública e propõe uma reorganização do sistema com base na atenção primária, na territorialização e na integração de redes de serviços.
No entanto, especialistas do setor de saúde, sindicatos e acadêmicos alertam que essa medida, se implementada administrativamente e não por lei, pode ter consequências profundas em termos de legalidade, governança, financiamento e atendimento ao paciente.
"São 30 páginas de conteúdo que, embora pareçam boas, são irrelevantes em alguns aspectos e prejudiciais em outros", resumiu Andrés Vecino, analista de sistemas de saúde e professor da Universidade Johns Hopkins. Para o especialista, além de aprimorar o sistema, em sua essência, "este decreto trata do uso de recursos da saúde", e está sendo implementado sem condições institucionais, técnicas ou fiscais suficientes para sustentá-lo.

A reforma da saúde não avançou no Congresso após sua aprovação pela Câmara. Foto: Sergio Acero. EL TIEMPO
Uma das críticas mais repetidas por especialistas consultados pelo EL TIEMPO é a legalidade da regulamentação. Luis Jorge Hernández, médico sanitarista e professor da Universidade de los Andes, alertou que o decreto "modifica administrativamente o que deveria ser regulamentado por lei". Isso, explica ele, contradiz a hierarquia regulatória do sistema colombiano, onde reformas estruturais no modelo de seguro devem ser aprovadas pelo Congresso.
A Associação Nacional de Empresários da Colômbia (Andi) também levantou a mesma questão. "É surpreendente que o Governo Nacional tenha decidido alterar regulamentações legislativas, incluindo algumas delas sujeitas a lei estatutária, por meio de um decreto, o que, sem dúvida, introduz um elemento adicional de imensa incerteza", afirmou a associação em um comunicado.
Essa preocupação não é meramente teórica: algumas das mudanças no Decreto, segundo especialistas, afetam regulamentações fundamentais, como a Lei 100 de 1993 e a Lei Orgânica da Saúde. Para muitos analistas, avançar com essa transformação sem o respaldo de uma lei representa uma "reforma secreta" que pode estar sujeita a alegações de inconstitucionalidade e que, ao mesmo tempo, gera significativa incerteza jurídica e política.

O governo emitiu o Decreto 0858 para implementar grande parte de sua reforma de saúde fracassada. Foto: Stock Adobe
Um dos pontos mais críticos destacados por todos os especialistas é a falta de um plano de financiamento claro para o modelo. O decreto estabelece que serão utilizados recursos do Sistema Único de Saúde (SUS), do Orçamento Geral da União, royalties e cooperação internacional, mas não especifica valores nem cria novas fontes.
"A previsão é que a implementação ocorra em seis meses. Ela terminará bem na época em que a Lei de Garantias entrar em vigor", alertou Vecino, que também observou que atualmente "não há dinheiro para custear (a implementação deste modelo), pois custaria uma reforma tributária inteira, segundo os cálculos da senadora Norma Hurtado".
Nesse sentido, o pesquisador Hernández concordou que o modelo "poderia agravar a crise financeira do sistema", pois propõe a expansão territorial e a construção de novas infraestruturas com os mesmos recursos atualmente insuficientes. "O sistema já está subfinanciado", afirmou.
O EPS muda e o atendimento é fragmentado Embora o decreto não elimine as Entidades de Promoção da Saúde (EPS), ele redefine substancialmente seu papel. Elas passarão a ser subordinadas às redes territoriais e deverão se adaptar às "sub-regiões funcionais" definidas pelo Governo.
“Os prestadores de serviços de saúde estão se fragmentando entre vários agentes”, alertou Ana María Vesga, presidente da Acemi. “Eu não vou mais ao meu próprio prestador de serviços de saúde, mas a um Centro de Atenção Primária (CAP). Meu atendimento primário é gerenciado lá, e esse CAP, juntamente com o prestador de serviços de saúde e a rede definida pelo Ministério da Saúde, decide onde eu recebo atendimento. A interação, que hoje envolve um único agente, está fragmentada entre vários atores.”

Os EPS não podem ser eliminados ou transformados por decreto. Foto: Mauricio Dueñas / EFE
Nesse sentido, Hernández destacou que essa reorganização poderia "afetar a continuidade do tratamento dos pacientes, principalmente aqueles com doenças crônicas ou de alta complexidade que exigem cuidados especializados e coordenados".
Uma preocupação que todos os especialistas alertam é a falta de clareza sobre quem coordenará o atendimento. "A confusão persiste sobre qual ator será responsável por redirecionar os pacientes quando eles precisarem de atendimento especializado", indicou a Andi, que tem se mostrado persistente em abordar essa questão desde que o modelo foi proposto na reforma da saúde. Essa lacuna, alerta o sindicato, pode se traduzir em serviços fragmentados, falta de coordenação e barreiras de acesso, especialmente para pacientes com condições complexas.
"A mudança na estrutura pode levar a um aumento nos procedimentos administrativos e à fragmentação da rede", alertou Hernández. "Isso se traduziria em maiores barreiras para os pacientes", acrescentou, observando que um exemplo claro disso é o que aconteceu com a saúde dos professores após a mudança em seu modelo de atendimento.
Vecino também enfatizou que o novo modelo "dilui a governança do sistema", ao retirar responsabilidades diretas das EPS e dar mais peso às entidades territoriais, sem garantir que elas tenham recursos ou capacidade técnica para assumir esse ônus.
Uma aposta política de alto risco No geral, o Decreto 0858 não é visto apenas como uma medida técnico-administrativa, mas como uma decisão política de alto risco, segundo especialistas. "O decreto não é apenas uma medida técnica arriscada, é também uma medida política com muitas consequências operacionais", concluiu Vecino.
Embora o governo defenda o modelo como um cumprimento do Plano Nacional de Desenvolvimento e um passo para garantir o direito à saúde com uma abordagem preventiva e territorial, a maioria das vozes do setor concorda que o caminho escolhido — o decreto — mina suas próprias intenções.
"O decreto não aborda os problemas atuais do sistema de saúde", afirmou Andi. "A crise financeira enfraqueceu a confiança entre as partes interessadas do sistema e resultou em uma crise humanitária que está afetando a saúde e a vida dos pacientes."

Guillermo Alfonso Jaramillo, Ministro da Saúde. Foto: Ministério da Saúde
Jornalista de Meio Ambiente e Saúde
eltiempo