<![CDATA[ Nascer 20 vezes ]]>
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"A partir de agora", rematou Luís Montenegro no final da sua defesa, a semana passada no Parlamento, "só respondo a quem for tão transparente como eu". A frase, coroando um rol (aparentemente) exaustivo de terrenos rústicos, tarefas de consultoria, legados sentimentais dos antepassados e esperanças depositadas nos descendentes, tem ecos de outro famoso protesto de integridade pessoal, lançado por Cavaco Silva há quase 15 anos: "Para serem mais honestos do que eu, têm que nascer duas vezes".
Na altura, Cavaco queria arrumar perguntas mais do que legítimas sobre os negócios de favor que o BPN lhe deu antes de explodir na cara (e no bolso) dos portugueses. Protestar a sua honestidade foi a forma mais expedita de evitar responder pelas relações que manteve com o banqueiro Oliveira e Costa, seu ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que, nessa qualidade, negociou amnistias fiscais com vários grandes empresários do regime – alguns dos quais surgiriam, logo a seguir, como acionistas fundadores do banco.
Cavaco nasceu duas vezes. Montenegro soube ser mais convincente. Não só porque o que se conhece do seu caso é infinitamente menos escabroso do que as ações preferenciais ou as permutas imobiliárias amigáveis de Cavaco, mas também porque Montenegro foi chamado a defender-se numa moção de censura que o Chega apresentou como um concurso de carácter – e concursos de carácter contra André Ventura qualquer um ganha.
Com o chumbo – óbvio, justo e apropriado – da moção de censura arrumou-se o assunto, mas não se resolveu o problema. Vamos a estudos de caso: quando Hernâni Dias monta empresas imobiliárias no exercício do cargo, cria a aparência de querer beneficiar da lei dos solos que o próprio está a preparar. É um conflito de interesses aparente, porque não há prova de que esse aproveitamento tenha existido. Quando um primeiro-ministro tem uma empresa apetrechada para comprar e vender imóveis – ou, pior, fornece consultorias confidenciais a clientes anónimos –, existe o potencial de que os negócios privados lucrem com as decisões e as redes de contactos e influência públicas. De novo, não há prova de abuso, mas o potencial está lá.
Não se trata de condenar ninguém por crimes ainda não cometidos. Trata-se de identificar riscos e mitigá-los ou eliminá-los, para que não cheguem a ocorrer. Alias, é essa única vantagem dos conflitos de interesses aparentes e potenciais, face aos reais: vão a tempo de ser prevenidos. Se alguém fizer alguma coisa para isso. Em Portugal ninguém faz. No caso de Hernâni Dias, a Entidade para a Transparência veio a correr desmentir o ex-governante, anunciando que não tinha dado quaisquer pareceres ou conselhos sobre como prevenir que as empresas que criou lhe viessem a dar chatices. Resultado: deram chatices.
Vivemos num sistema perverso que obriga os políticos a resolverem os seus próprios conflitos de interesses, porque mais ninguém se ocupa disso. Repare bem: ao ser chamado a decidir em causa própria, um político trata do seu conflito de interesses… em conflito de interesses! Mesmo que aplique a melhor solução do mundo, é sempre possível um opositor acusá-lo de estar a servir-se do cargo.
Vamos com o trabalho a meio: temos os mecanismos de transparência que nos permitem identificar problemas (sim, com muitas falhas e uma tentação permanente para sabotar o escrutínio). Mas uma vez identificados, não temos ninguém que sugira remédios para os resolver, para prevenir choques entre interesse público e privado. Ficamos a ver pingar o caso da semana, que depois é discutido na lógica redutora de saber se o envolvido é "sério" ou desonesto. Enquanto não percebermos que precisamos de instituições qualificadas, podem os nossos políticos nascer 20 vezes, que não estancaremos esta hemorragia.
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sabado