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O vestido inglês

O vestido inglês

Sempre houve gente ingénua, facilmente impressionável, emotiva e voluntarista que, em nome das boas causas, fez e defendeu coisas perfeitamente idiotas. Em meados do século XIX, no romance Bleak House — publicado em Portugal como A Casa Sombria — Charles Dickens deixou-nos o arquétipo desse tipo de pessoas na personagem de Mrs. Jellyby, uma senhora de posses, de fortes inclinações filantrópicas e que dedicava muito do seu tempo e da sua energia a pôr de pé aquilo que designava por “empreendimento de Borrioboola-Gha”, uma iniciativa para ajudar os negros de uma remota região africana. A ideia era transportar ingleses pobres para África, a fim de que aí se estabelecessem e ensinassem os negros a cultivar café. Na sua imaginação isso solucionaria o problema da desigualdade racial e melhoraria a vida de todos os envolvidos. Ou seja, de uma só cajadada ajudaria a resolver os problemas sociais e económicos da pobreza em solo britânico e africano.

A senhora era uma activista avant la lettre. Passava o dia a escrever cartas, a elaborar listas, a tratar da organização do seu empreendimento, a pôr de pé mil actividades redundantes ou desnecessárias. Mrs. Jellyby empenhava-se na confecção de camisolas de lã para os pobres negros, mas ignorava as necessidades da gente miserável com que todos os dias se cruzava em Londres e, até, as da sua própria família. A sua casa era caótica e os cinco filhos andavam sujos e ao Deus dará, excepto Caddy, a filha mais velha, que desempenhava as funções de secretária da mãe. Mas a obsessão da senhora com o seu projecto filantrópico era a tal ponto que Caddy passou a odiar a palavra “África” e o pai, o senhor Jellyby, acabou arruinado — e à beira do suicídio —, tantos os donativos que a sua mulher fez ao seu “empreendimento de Borrioboola-Gha”. Empreendimento que, para além do mais, não deu em nada pois o rei africano local escravizou e vendeu as pessoas que nele trabalhavam de modo a poder comprar aguardente. Esse total desaire não derrotou Mrs. Jellyby que logo encontrou uma nova generosa causa para empenhar o seu tempo e os seus bens.

Muita gente da época — Charles Dickens incluído — designava a atitude de pessoas como Mrs. Jellyby pela expressão “filantropia telescópica”. Também temos, actualmente, nos nossos países ocidentais, muita “filantropia” dessa e multidões de criaturas como Mrs. Jellyby, isto é, gente mais papista do que o papa e que, em nome de nobres causas e de justas lutas em defesa de comunidades distantes, estrangeiras ou há muito desaparecidas, atropela quem está ao pé de si e ignora os direitos e liberdades dos seus concidadãos. Todavia, agora as coisas são ainda mais graves do que eram no século XIX porque, com o movimento woke e o seu desejo de atingir a justiça social a qualquer preço, aquilo que, no caso da senhora Jellyby, era simples indiferença ou desatenção para com o sofrimento e as carências dos que lhe eram próximos, tem vindo a passar muito para além disso e converteu-se em aversão, rejeição, desdém, oposição, raiva, agressão.

Suponho que o Reino Unido é o país da Europa onde isso é mais comum e mais evidente. Todas as semanas os jornais britânicos nos trazem os exageros e a humanitária desumanidade das Mrs. Jellyby do presente. O último episódio de “filantropia telescópica” moderna — com a correlativa hostilidade ao que é próximo e familiar — que chegou ao meu conhecimento prende-se com um vestido. A história, seguindo a notícia do The Telegraph, conta-se rapidamente. Há cerca de duas semanas, numa sexta-feira em que se celebrava o “Dia da Diversidade Cultural”, no qual as crianças podem usar roupas representativas da sua cultura e fazer uma pequena apresentação na sala de aula sobre a sua herança cultural, uma das alunas de uma escola em Rugby, cerca de 50 quilómetros a leste de Birmingham, uma inglesa branca de 12 anos, foi às aulas com um vestido inspirado num que as Spice Girls usavam e cujo tecido reproduzia a bandeira britânica. Não a deixaram falar sobre a cultura inglesa e alguns dos seus traços — o hábito de beber chá e de comer fish and chips, a valorização do fair play e das boas maneiras, o gosto por uma certa forma de humor, etc. —, explicaram-lhe que só as crianças de outras culturas poderiam celebrar — pois as britânicas celebrariam todos os dias —, disseram-lhe que o seu vestido era “inaceitável” — foi essa a palavra usada —, expulsaram-na da aula e obrigaram-na a ficar sentada no átrio da escola até que o pai viesse buscá-la. A criança confessaria depois ao jornalista que a ouviu que se sentiu muito humilhada.

Tendo o assunto assumido alguma retumbância nacional e levado a uma declaração do gabinete do primeiro-ministro, a escola veio desculpar-se com o típico discurso politicamente correcto, redondo, asséptico, aromatizado, mas há perguntas relacionadas com a “filantropia telescópica” que continuam a vir sopradas no vento, como diria Bob Dylan, enquanto aguardam que lhes demos uma cabal resposta. E as mais importantes são as seguintes: A inclusão, o respeito e a valorização são só para os estrangeiros? E o que é que se faz com idiotas como estes professores de Rugby que hostilizaram a aluna branca com vestido à Spice Girls? O movimento woke trouxe milhões dessas pessoas para as redes sociais, as páginas dos jornais e a luz dos holofotes, e trouxe-as, também, para lugares de decisão e influência, como são os parlamentos, os tribunais, as escolas e universidades, e, em Inglaterra sobretudo, as polícias. É aí que o esforço para enaltecer as outras culturas e condenar a própria é mais visível e mais chocante. Quando é que reagimos? Este pequeno incidente passado numa escola inglesa é muito esclarecedor do que tem vindo a passar-se nas nossas sociedades e é mais um sinal de alarme para que saiamos da nossa simpática e mole sonolência. Quereremos ficar, bem como as nossas culturas ocidentais, à beira do suicídio como o pobre senhor Jellyby?

observador

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