Quando Amélia de Orléans regressou a Portugal

Ao longo de toda a visita, aliás, a protagonista foi reforçando o pedido para que se evitassem luxos e ostentações, frisando que partira de um país assolado pela fome e miséria. Do ponto de vista nacional, e além fronteiras, o contexto histórico aquando da visita é particular. Os ecos do dia da Vitória aliada sobre a Alemanha nazi, em 8 de maio de 1945, são ainda frescos numa Europa a recuperar do conflito quando a última rainha portuguesa regressa a Portugal, então com 79 anos. Lendária é também a decisão de Amélia em território ocupado. Quando soldados alemães entram em sua casa nos arredores de Paris em 1940, Salazar pede que o palácio seja considerado território português e convida-a refugiar-se em Portugal. “Na minha desgraça, a França acolheu-me, não a abandonarei na desgraça dela”, terá respondido a rainha à proposta, resistindo numa das alas do palácio, onde hasteou a bandeira da república portuguesa.
À semelhança de seu filho, Manuel II , Amélia de Orléans (ela própria nascida no exílio, imposto pela chegada ao poder em França de Napoleão III) seguiria o caminho de Londres quando a monarquia caiu. Na capital britânica permaneceu até 1913, quando o filho mais novo se casou. A mãe muda-se então para o Château de Bellevue, perto de Versalhes, em França, construído pelo arquiteto Leyendecker, que adquirira em 1920 por 500.000 francos e onde se instala em 1922. De resto, durante a I Guerra Mundial fora conhecido o seu trabalho na Cruz Vermelha, tendo sido condecorada pelo Rei Jorge V (1865-1936) de Inglaterra, por ter levado o auxílio a feridos, crianças e adolescentes entre aquele país e a França.
Se a dor foi uma constante, dir-se-ia que todas as rotas possíveis convergiam para um destino único. “Dona Amélia esteve para se casar com o arquiduque Francisco Fernando, que acabou assassinado em Sarajevo em 1914. Parece que estava destinada a ser viúva, ou mesmo a morrer, já que a mulher do arquiduque também foi assassinada. Com D. Carlos foi um casamento político, normal e feliz.”, descreve José Miguel Sardica.

Com o filho mais novo, D. Manuel II, último rei de Portugal, em 1910
Um a um, os familiares diretos de Amélia foram desaparecendo. O luto remonta ao óbito da filha prematura, infanta Maria Ana de Bragança. Seguir-se-ia com o assassinato do marido e do primogénito, o príncipe real Luís Filipe. 24 anos após o regicídio, Amélia de Orléans recebia a notícia da morte do filho mais novo, que “herdou a coroa portuguesa com um país já muito republicanizado”, situa a o historiador, notando como o clã foi encolhendo. “Inicialmente a família real contava seis pessoas, os monarcas, os filhos e ainda D. Maria Pia (a sogra de D. Amélia), e o irmão de D. Carlos, o infante Afonso de Bragança, o amante de automóveis que passou à história como “O Arreda”. “Há um ambiente muito sombrio quando ficam as duas viúvas. Quando a República se institui, todos os títulos e a casa real são extintos. Maria Pia regressa a Itália, o ramo liberal constitucionalista extingue-se com a morte de D. Manuel, D. Amélia recolhe-se ao chateau de Bellevue, onde foi filantropa de escolas, cantinas, e durante as guerras alinhou sempre pelo esforço aliado.” Enquanto o seu benjamim foi vivo, continuava a ir a Londres e dividia temporadas entre Suíça, Cannes e Itália. Após a morte de Manuel, cabe-lhe supervisionar as exéquias e vê a nora rumar à Alemanha, cavando ainda mais o seu isolamento.
Em 1937, por ocasião da Exposição Mundial de Paris, o governo português convidou a rainha a visitar o Pavilhão de Portugal. Amélia acedeu ao convite mas furtou-se a comentários sobre o contexto político nacional. Nesse ano, no entanto, dá a primeira entrevista ao “Diário de Lisboa”. Depois de Joaquim Manso, seguir-se-ia Leitão de Barros através de O Século. Em 1939, para o Diário de Notícias, Armando Boaventura deslocava-se até Versalhes para se sentar com a antiga consorte.
Mas é preciso esperar uns anos até ao regresso a Portugal, uma estadia que se cruza com dois acontecimentos marcantes, cada qual à sua maneira. Para além do já referido óbito inesperado, há um nascimento especial a acrescentar contexto. Uns dias antes da chegada a Lisboa, nascia em Berna, no seio do exílio suíço da família, na Legação de Portugal daquela cidade, Duarte Pio de Bragança, seu afilhado e descendente do banido D. Miguel, por quem se haveria de rezar uma missa de graças na mesma igreja de São Domingos que assistira ao casamento do Rei D. Carlos com a princesa francesa. A rainha, que foi madrinha de batismo, ao lado do papa Pio XII, testemunhando essa reunião no sangue de Duarte Pio dos ramos brasileiro constitucional e do ramo português legitimista, não terá marcado presença, alegando questões de saúde e enviando no seu lugar o fiel escudeiro visconde de Asseca.

Na edição de 24 de maio de 1945, a notícia do nascimento do seu afilhado, Duarte Pio de Bragança, surge nas páginas da Vida Mundial Ilustrada
Em 20 de junho, segue para a Ericeira, “onde a esperam centenas de pessoas”, tal como nesse outubro de 1910 em que se despediu da pátria adotiva. No mesmo dia, desloca-se a Mafra, outrora residência real e motivo para uma certa animação monárquica
A 23, em apoteose, milhares de populares rodeiam o automóvel que a conduz até à Assistência Nacional aos Tuberculosos, uma das suas obras sociais.
Na tarde do dia 27, em resposta ao convite formal enviado pelo visconde de Asseca, uma pequena multidão acorre à receção oferecida no Aviz, já que muitos insistiam em cumprimentar a rainha, à medida que o pano ia caindo sobre as últimas semanas.
No dia 30 de junho, por fim, Amélia partiu bem cedo de manhã do Aviz rumo à estação de comboios de Entrecampos. “Às 8 horas, já em frente do AvizHotel se viam alguns populares, principalmente mulheres, e diversos táxis. Ás 8 e 40, depois de se ter despedido, com a maior afabilidade, do gerente e do pessoal do hotel agradecendo a maneira como a trataram, a antiga soberana, envergando um tailleur cinzento, lenço de seda branco ao pescoço, chapéu preto com uma cercadura branca, enfeitado com penas pretase brancas, alvas luvas e a inseparável bengala, saiu acompanhada apenas por madame Randal e pelo sr. visconde de Asseca, no meio de palmas da assistência”, lê-se no Diário de Lisboa. Já na estação de caminhos de ferros, ao serviço policial juntava-se uma comissão de nomes próximos e afetos à monarquia. “Na gare não há um palmo de solo livre”, assinala-se sobre aquela que seria a segunda e derradeira partida da última rainha de Portugal. “Vim para matar saudades e levo mais do que as que trouxe comigo. Viva Portugal”, despede-se Amélia, que em Vilar Formoso haverá de enviar mensagem ao presidente Carmona e a Salazar. Talvez porque seria empreitada demasiado forte para um coração saudoso, falhara apenas a passagem pelo Paço Ducal, em Vila Viçosa.
No dia da partida da ilustre visitante, o presidente do Conselho envia uma nota especial aos jornais, anunciando os donativos efetuados pela antiga rainha durante a sua passagem pelo país. Para a Misericórdia de Lisboa, 200 contos. E ainda outros 500 contos confiados a Salazar, para que este lhes atribuísse o melhor destino. A decisão é rápida. O montante é destinado à construção do sanatório do Porto.
Apreciadora da normalidade de uma vida que permitisse refugiar-se em Sintra, nadar nas praias de Cascais, caçar na Tapada de Mafra ou frequentar o São Carlos, a rainha que adorava a pintura, o desenho, e a fotografia deixar-se-ia captar por um dos maiores retratistas da época. Durante a passagem por Lisboa, os registos mostram que posou para Manuel Alves de San Payo, Lisboa, mantendo um sorriso que tanta vez um destino marcada pela perda tentou silenciar. “Ela é a única rainha portuguesa de que temos registos sonoros”, nota o historiador. Com efeito, no verão de 1951, Leitão de Barros deslocar-se-ia a França para uma espécie de documentário. A protagonista viveria apenas mais alguns meses.
A 25 de outubro de 1951, aos 86 anos, Amélia de Orléans morre na sua residência em Versalhes, na mesma cama, rezam as crónicas, que a esperava no Palácio de Belém quando chegou a Lisboa, pintada pelo mestre Columbano. “Levem-me para Portugal” terão sido as suas derradeiras palavras, cumpridas com honras de Estado em 29 de novembro desse ano.
Uma vez conhecida a sua morte, o governo português decretou três dias de luto nacional, a bandeira foi colocada a meia-haste em todos os edifícios públicos, e agilizou-se a trasladação do seu corpo para Portugal. A urna seguiu a bordo do navio português Bartolomeu Dias e as cerimónias fúnebres realizaram-se a 30 de janeiro de 1952, com Salazar entre os presentes. Foi sepultada no panteão dos Bragança.
observador