Teste inovador desenvolvido no Algarve vai ajudar a escolher terapias mais eficazes contra o cancro

Um teste genético com software próprio de interpretação, baseado em algoritmos de machine learning, promete ajudar os médicos oncologistas a escolher, de forma personalizada para cada paciente, as terapias-alvo mais eficazes para doentes com cancro da mama.
Esta é a primeira meta da expressTEC – Investigação e Desenvolvimento em Biotecnologia, Lda., uma startup algarvia de base científica criada por Joana Xavier e Ana Teresa Maia, investigadoras com mais de 25 anos de experiência em investigação oncológica.
«O nosso propósito é desenvolver novos testes complementares de diagnóstico. São testes feitos após a pessoa já ser diagnosticada com cancro, que ajudam a decidir a melhor terapia dentro das opções que existem. Vão ajudar a encontrar o tratamento mais eficaz, individualmente, o mais cedo possível. É algo que pode ter um impacto muito grande na resposta clínica dos pacientes e na sua qualidade de vida», começa por explicar Ana Teresa Maia.
O produto inaugural da expressTEC chama-se expressPIK e é descrito pelas fundadoras como uma prova de conceito para o cancro da mama. Analisa fragmentos de RNA presentes nas amostras de biópsia recolhidas durante a fase de diagnóstico da doença, sem necessidade de novo material clínico.
«É como um teste PCR da Covid-19, mas em vez de procurarmos o vírus, estamos a detectar RNAs específicos dos tumores», acrescenta a cofundadora da empresa.
A diferença está na análise. Os dados do teste são carregados numa plataforma digital numa cloud segura da empresa e processados por um algoritmo proprietário, desenvolvido pelas próprias investigadoras, que gera um relatório clínico.
«O software interpreta os resultados e gera um relatório médico com as terapias com maior probabilidade de sucesso para aquele doente em particular», acrescenta Joana Xavier. O médico oncologista pode assim tomar decisões mais fundamentadas e rápidas.
Os números falam por si: quase 50% dos doentes com cancro e 70% dos casos metastáticos, não respondem à primeira linha de tratamento.
«Há 20 a 22 milhões de novos pacientes com cancro por ano. O nosso objetivo é diminuir esses 50%, o mais possível», até cerca de um quarto, estima Ana Teresa Maia.
Em Portugal, cerca de 8.500 mulheres por ano são diagnosticadas com cancro da mama. Pelo menos 10% já chegam aos serviços de saúde em estádios avançados da doença. E, em mais 40% dos casos, a doença progride porque os tratamentos deixam de ser eficazes.
«Cerca de 300 portuguesas poderiam beneficiar do nosso teste», estima Ana Teresa Maia. «Na Europa e nos Estados Unidos, esse número sobe para quase 600 mil casos por ano».
4000 amostras, duas bibliotecas internacionais e um biomarcadorA descoberta do biomarcador que deu origem ao teste da expressTEC envolveu a análise de mais de quatro mil amostras tumorais, provenientes de bibliotecas internacionais da Europa e dos Estados Unidos da América (EUA).
«Os dados dessas amostras foram recolhidos e depositados em grandes bases de dados. Em termos de investigação académica, usámos uma técnica chamada biologia computacional, aplicando técnicas inovadoras de clustering e data science em biomedicina», revela Ana Teresa. Desde modo, a equipa identificou um padrão.
Foi um estudo de dados reais de doentes, em colaboração com instituições internacionais como a Universidade de Cambridge e o National Cancer Institute de Amsterdão.
«Fizemos também um pouco de trabalho laboratorial para confirmarmos alguns parâmetros, mas foi maioritariamente computacional, sendo pioneiro em Portugal», refere Ana Teresa.
Por sua vez, Joana Xavier explica que «quando se faz uma investigação em que o objetivo é fazer uma caracterização, temos de ter um número suficientemente grande de amostras para encontrar diferenças. A partir do momento em que encontramos um biomarcador, já vamos olhar os dados de uma maneira mais focada» e não é necessário um universo tão grande.
Ana Teresa exemplifica: «Neste momento, já temos um biomarcador, já temos uma molécula que sabemos que tem um significado clínico importante. Agora só queremos mostrar que o nosso teste de PCR funciona bem e que consegue medir esse biomarcador», num número reduzido de amostras. «É uma validação. Já não é uma descoberta».
Segundo Joana Xavier, a empresa aponta para o mercado mundial. «O nosso primeiro pedido de patente está submetido e pendente nas cinco regiões mais importantes para nós como mercado, que representam 75% do total».
No futuro, quando o sistema estiver no mercado, «vamos continuar a fazer investigação com base nesses dados para, subsequentemente, irmos melhorando as versões do nosso software».
Já existem hoje nos hospitais e em muitas clínicas os procedimentos de utilização deste tipo de testes.
«O médico prescreve, o paciente autoriza o acesso à sua biópsia, o teste é realizado, faz-se o upload dos resultados, nós analisamos e devolvemos o relatório, tudo na mesma plataforma online».
Aliás, a startup já tem um projeto-piloto a funcionar com o Grupo Luz Saúde, através dos Serviços de Oncologia e de Anatomia Patológica.
A cientista sublinha que «o grande objetivo não é só vender a privados» até porque este sistema «pode e deve ser implementado no Serviço Nacional de Saúde», em Portugal e noutros países.
Apesar de ainda não estar no mercado, Ana Teresa Maia tem noção da relação custo/ benefício.
«Se não nos tornarmos competitivos, também em termos de preços, uma vez que somos newcomers no mercado, será mais difícil de penetrar. Essa é uma das nossas preocupações, trazermos mais-valia aos serviços hospitalares e aos pacientes, tentando ao máximo, ser competitivos».
Antes mesmo de lançar o seu primeiro teste clínico, a expressTEC já está a trabalhar nos próximos. A estratégia é criar uma plataforma escalável de diagnóstico que permita aplicar o mesmo modelo tecnológico a vários tipos de cancro e a diferentes mutações com relevância clínica.
«O nosso primeiro produto é para cancro da mama, mas estamos já a desenvolver investigação para alargar a aplicação ao cancro colorretal, e depois a outros, como o do ovário ou do pulmão», revela Ana Teresa.
A chave está na forma como as cientistas desenharam o produto: o kit de reagentes mantém-se igual, independentemente do tipo de tumor. «É um teste agnóstico quanto à amostra. O que muda é a validação científica e clínica do alvo em cada tipo de cancro», descreve.
Ou seja, o que a startup propõe é uma tecnologia de base comum que pode ser aplicada em diferentes cenários oncológicos. Sempre que novas terapias são aprovadas para alvos moleculares já estudados, como o gene PIK3CA, a equipa acompanha o desenvolvimento da indústria farmacêutica para alinhar a investigação e acelerar o seu «roadmap de tecnologia».
«Se as farmacêuticas estão a avançar com fármacos para este biomarcador noutros cancros, nós vamos atrás, desenvolvendo os estudos necessários para validar o nosso teste nessas indicações», explica Ana Teresa.
Esse trabalho já está a ser feito com o apoio do Programa Regional ALGARVE 2030, através de financiamento FEDER superior a 700 mil euros, com uma taxa 82.57%, entre 2025 e 2027.
«É um pensamento ambicioso, mas é a única forma de criarmos impacto real», assume Joana Xavier.
E ainda há muito por descobrir. «Sempre, porque não só os tratamentos evoluem, mas também porque com a sua evolução, evoluem as metodologias de testagem. Por isso, é preciso haver empresas como a nossa. Queremos revolucionar esta área, pensando de maneira, por vezes, diferente», remata a investigadora.
Do laboratório para o mercadoSegundo Joana Xavier, «o teste genético que estamos a desenvolver surge com base na investigação que realizámos aqui na Universidade do Algarve, ainda enquanto cientistas, com as nossas questões biológicas em cancro da mama. Obtivemos resultados que nos mostraram que poderiam ter um impacto grande na clínica e que podiam alterar a forma como os pacientes hoje estavam a ser testados e estavam a ser selecionados para as terapias-alvo», recorda.
Durante o processo, as cientistas foram incentivadas pelo CRIA – Divisão de Empreendedorismo e Transferência de Tecnologia da UAlg, «tanto a proteger a propriedade intelectual, como a desenvolver uma ideia de negócio».
Em vez do processo normal de transferência de conhecimento da academia para a indústria, «decidimos sermos nós a fazê-lo, porque percebemos que de outra forma, isto poderia nunca chegar ao mercado e nunca vir a ajudar a salvar vidas».
Ana Teresa Maia complementa a justificação da colega: «Esta nova linha de testes, numa empresa de diagnósticos, poderia ser apenas mais uma. Poderia ir para um pipeline no qual a prioridade não é a mesma que para quem desenvolveu a ideia. Nós temos uma motivação diferente. Se o conhecimento não é transformado em algo utilizável, não vem mudar nada na humanidade».
A expressTEC não tenciona tornar-se fabricante nem competir com os grandes distribuidores internacionais. A estratégia passa pelo licenciamento do teste — ou seja, ceder os direitos de exploração comercial a uma farmacêutica com capacidade instalada.
«O ideal não é tentarmos ser nós a produzir, a distribuir, a competir com grandes players no mercado que já têm os canais montados», diz Joana Xavier. «O mais fácil e mais eficaz é licenciar. E usar os royalties para desenvolver outros testes. Queremos seguir este modelo: desenvolvimento em cadeia, licenciamento em cadeia».
Segundo Ana Teresa Maia, o licenciamento pode acontecer em qualquer fase do processo, embora, «quanto mais avançado estiver o produto, maior é o valor». Mas «queremos garantir que o teste chega mesmo aos pacientes. Esse é o nosso verdadeiro objetivo» e que não fica na prateleira por questões de estratégia comercial.
Em Portugal, contudo, a maior parte da indústria «desenvolve medicamentos, não testes de diagnóstico», lamenta Ana Teresa Maia.
O plano da startup algarvia, caso mantenha o desenvolvimento interno, prevê o lançamento do primeiro teste no mercado dentro de dois anos e meio.
«Estamos a aprender tudo sobre a certificação regulatória conforme passamos pelo processo, que é longo e trabalhoso», acrescenta Joana Xavier.
Ainda no que toca gestão empresarial, comparam, não é muito diferente do que acontece na carreira de investigação científica.
«Estamos a aprender a parte comercial. Temos parceiros a ajudar-nos a analisar os mercados, os caminhos, e até a pensar a estratégia. Mas, por outro lado, nas universidades portuguesas, não há grande financiamento para os investigadores fazerem ciência de ponta. Temos de concorrer constantemente a financiamentos nacionais e internacionais. Nesse aspeto, é muito semelhante», remata a colega.
Apesar dos conselhos para mudarem a startup para os centros urbanos de Lisboa ou Porto, as fundadoras decidiram manter o projeto no Algarve.
«Temos financiamento de fundos europeus geridos localmente, estamos rodeadas por um ecossistema de empreendedorismo que nos tem apoiado muito. E, ao nível da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve, comparando com colegas noutras regiões, a resposta aqui é muito mais rápida. E estamos a ter sucesso», justifica Joana Xavier.
Ana Teresa Maia acrescenta que o apoio foi também prático: «O CRIA, mesmo não tendo experiência prévia em biotecnologia ou health tech, disponibilizou-nos um espaço que vamos adaptar a laboratório próprio certificado. É um dos projetos já aprovados no âmbito do Programa Regional Algarve 2030. Fala-se muito em criar centros para acolher empresas como a nossa, mas ainda não existem em Portugal. Aqui foi-nos dada liberdade para moldar o espaço às nossas necessidades».
O exemplo da expressTEC poderá ter efeito multiplicador, na opinião das cientistas. «Se tivermos sucesso, talvez incentive mais investigadores a avançar com novas startups na região», acredita Joana Xavier.
Ana Teresa Maia reforça: «Temos feito um esforço para sermos porta-estandarte do Algarve tecnológico. E a Universidade do Algarve também tem apostado nisso, atraindo não só spin-offs como a nossa, mas também empresas tecnológicas de fora».
Apesar de jovem, a empresa participa atualmente em programas de aceleração nacionais e europeus, promovidos pela Agência Nacional de Inovação (ANI), pelo EIT Health e pela Startup Braga, que oferece acesso a mentores especializados na área da saúde. Além disso, integra o centro de investigação RISE Health, com sede no Porto.
Filantropia faz parte da missãoAs cientistas empresárias sabem o acesso à saúde não é uma realidade universal e consideram que há espaço para a filantropia. «Fazemos parte de uma associação de empresas de biotecnologia em Portugal (P-Bio – Associação Portuguesa de Bioindústria), que assinou, há cerca de três anos, um pacto social, em que as empresas querem dar uma certa percentagem dos seus produtos a países com menos poder económico para os comprar. O nosso objetivo é tentar democratizar ao máximo estes testes, porque há pacientes de cancro em todos os estatutos financeiros e sociais. É uma doença que não olha a estatuto social e a capacidade financeira», diz Joana Xavier.
Ana Teresa lembra que «para gerarmos este conhecimento é importante termos capacidade. Primeiro que tudo, tivemos de investir em servidores. A Universidade do Algarve tem um centro de cálculo muito bem montado, mas não havia capacidade para o volume de dados (big data) que nós analisámos em contexto de investigação. Tivemos de contratar pessoas formadas nesta área para conseguirmos aqui chegar. Não é uma investigação que se faça numa garagem. É uma coisa de primeiro mundo. Mas o nosso objetivo sempre é levar isto ao paciente, a qualquer paciente. O que está em causa é sempre um ser humano».
Barlavento